Através dos olhos de um vira-lata
Tive um adorável vira-lata, chamado Paçoca. Quando o adotei, no canil municipal, tinha a pelagem curta, da cor de um amendoim, uma paçoquinha, daquelas que se vende em bares de rodoviária e nos arredores das cidades. Não pensei duas vezes: Esse será seu nome. Quando pequena, tinha uma mania, feia para caramba, de trucidar os chinelos que ficassem dando sopa na casa. Dizia que era uma ladra de chinelos. Também era ágil para roer um cabo de carregador, uma extensão de energia. Até o dia que mordeu uma extensão ligada à tomada. A explosão a assustou bastante e, daquele dia em diante, nunca mais roeu um fio sequer. Quando pequenina, nossa doguinha era muito graciosa. Fofinha, brincalhona. Crescida, tornou-se formosa, uma bela representante da honorável SRD – Sem Raça Definida, o popular vira-lata. De porte mediano, patas grandes, corpo e focinho alongados, pelagem curta, com uma grande mancha branca que estendia abaixo do focinho até o meio do corpo. Com o passar dos anos, começaram a aparecer pelos brancos, imitando o dono, já de barba e cabelos grisalhos. Dizem que os cães aparentam os donos. Mais parecia uma senhora de um bairro distante, daquelas lavadeiras em casas de muro baixo. E, de fato, a Paçoca tinha umas pegadas que não eram desse mundo. Frequentemente descia as escadas correndo e disparava quintal afora, numa velocidade sem tamanho. Ficava horas na grade do portão, observando o movimento e latindo para quem ousasse se aproximar de seu território. Quando, aos domingos, ia comprar pão na Padaria da Joana, em minha companhia, desfilava toda garbosa ao dar um rolezinho. Passado um tempinho, ouvíamos latindo. Lá estava ela, sentada na frente do portão, esperando alguém se aproximar. Uma figura. Não saia à rua, pois era uma cachorra de hábitos caseiros, acostumada ao seu mundinho. Quando precisava sair e chegava tarde da noite, lá estava ela, me aguardando. O portão abria no compasso de seu rabo, pitoco. Ela mais rebolava do que abanava. Com tinha o rabo curto, balançava o traseiro, num ritmo alucinante. Partia em minha direção, comemorando meu retorno. Acompanhava-se até a porta da cozinha, querendo saber o que fazia para estar até aquela hora da noite longe de casa. É engraçada a relação que estabelecia com nossos amigos caninos. É curioso o afeto mútuo que se estabelece entre nós. Lembro-me que, certa feita, um amigo faleceu e seu cão ficou durante toda noite no velório e acompanhou o cortejo até o cemitério. Por vários dias, ia até o túmulo e não queria sair de cima do jazigo. Levado para casa, dava um jeito de fugir e voltava para o cemitério para deitar-se sobre o túmulo de seu amigo que havia partido.
Um filme contava a história de um cão que sempre esperava seu dono chegar do trabalho, na estação do trem. Seu dono, um professor, veio a falecer e, mesmo assim, o cãozinho continuou indo todo santo dia até a estação do trem para esperar o regresso do seu amigo humano, até o dia que veio a falecer também.
O escritor Carlos Heitor Cony, dono da cachorrinha Mila, dizia que o único amor verdadeiro que existe é o amor de um cão pelo seu dono. Não digo que concordo com isso, mas não tenho a menor dúvida que o afeto desses adoráveis bichinhos nos ensinam a amar mais humanamente e a sermos pessoas melhores.
Hoje, enquanto escrevo essas linhas tortas, estou lembrando de minha amiga Paçoca, ao meu lado, deitada próxima de mim, já calma pela idade avançada. Ela já corre mais, não pula, não late. No ano passado, Paçoca nos deixou. Tive que arrumar uma nova companhia. Minha cachorra agora chama-se Pipoca. Tem a pelagem branca, pula e brinca igual a cachorra Paçoca, a anterior. Sempre tive cães. Não consigo viver sem eles. As manias são as mesmas: Morde os sapatos, late no portão e vive aprontando poucas e boas. Dias atrás, apanhou o estojo de agulhas e engoliu duas delas. Acabou passando por uma cirurgia para a retirada.
Quando ouve a minha voz, chamando-a pelo seu nome, rapidamente ergue as orelhas, em sinal de prontidão, abanando o rabo, a espera de um afago. Muda-se os cachorros, mas a gratidão, o amor é o mesmo. Podemos ver nos olhos de um cachorro toda a doçura que muitas vezes falta no coração humano, no peito de cada um de nós.