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Crônica: Um conto de Natal

Luísa nem sabe quando deixou de gostar de Natal. Talvez tenha sido na infância, quando descobriu que Papai Noel não existe. Junto com o susto, veio a decepção. Não ganhou a boneca que pediu e que enternecia, colada na vitrine da loja.
Na véspera da noite da ceia, a boneca sumiu da vitrine. Veio a certeza: Estaria na sua árvore.
Não estava.
O presente substituto não tinha a menor graça. Nem o Natal.
Aprendeu, sem a farsa do Papai Noel, que os adultos assumiam a responsabilidade sobre os presentes. Não tinham qualquer compromisso com o sonho infantil exposto no pedido feito na cartinha.
A vida real doeu fundo no coração de Luísa.
Talvez o desgosto com o Natal possa ter vindo da mesa perdendo cadeiras. Eram 20, depois 18, 16, 10… Convidados da ceia iam faltando. Uns porque mudaram de vida, de cidade, de turma. Outros morreram.
Luísa só tinha uma certeza: Morreram só para marcar ausência na mesa da ceia de Natal.
Parece que o papai de Luísa pensava igual. Sem dar conta da dor provocada pelos ausentes, todo Natal, o pai-triste arranjava um bate-boca com alguém na comilança natalina e estragava a ceia de todos.
Adulta, Luísa passou a não gostar nem de dezembro. Tinha raiva da compração desenfreada nas lojas, cheias de gente ansiosa, dos enfeites, sempre numa interminável pisca-pisca. Da neve falsa, do Papai Noel de barba fake e da roupa cheirando a mofo.
Passou a abominar tudo que, na noite de Natal, leva a um frango enorme, com carne seca e sem sabor, uma leitoa plantada no centro da mesa, com a gordura transbordando por todos os lados.
Com suspiros, Luísa contava os segundos para rolar o tal do amigo secreto que, cheio de falsos elogios, encerrava a chatice do ritual natalino.
Um dia, Luísa teve filhos. Os amigos, parentes próximos e queridos, mantiveram a tradição. Luísa seguiu odiando dezembro. Para não ser chata, assumiu a produção da ceia, para todos.
Aboliu o peru da festa, trocado por um belo e cheiroso prato de bacalhau, que, para os enojados, preferiam um tender, sem compota de frutas. Arroz branco, farofa de farofa, sem aditivos e sem manteiga. Assim foi levando a festa de Natal, até com certo prazer. Afinal, além da farra das crianças com seus brinquedos, o Natal marca o início da última semana, que, do ponto de vista de Luísa, marca o fim do detestável mês de dezembro.
O Natal seguiu assim, suportável, quase bom, até que os filhos e depois os netos cresceram e ganharam mundo. As cadeiras da mesa voltaram a não ter lotação esgotada. Para complicar ainda mais, o Natal de 2020 e 2021, teve a desgraceira do Covid. Luísa até curtiu o Natal online, com quase ninguém à mesa. De ceia ao seu gosto – só com bacalhau e muito espumante para o porre dos que sobraram vivos.
2022 teve Natal de quase normalidade. Voltou a encarar o tender das compotas, o amigo secreto das falsidades, o parente inconveniente. Brava com dezembro, com o Natal e agora inconformada e injuriada com a violência da Guerra na Palestina, na Ucrânia. Que porra de Natal é esse, com essa matança consentida de crianças, mulheres e idosos? Perguntou.
Sem resposta, Luísa passou para novidade. Neste 2023, vai escapar da ceia, dos presentes, do frango seco e das frutas meladas do tender. Da dor com as guerras. Vai a um retiro budista, de silêncio, no interior de São Paulo. Contou e riu muito. Com sofreguidão, sem olhar para o calendário, passará sobre o Natal. Talvez nem saia da toca para o réveillon. Talvez.